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Segredos do Coração
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RESENHA

por Eliane Debus
Professora MEN/PPGE/CED -UFSC
2012

Em Segredos do coração, a quinta novela de Maria de Lourdes Krieger para o público juvenil, há o inter-relacionamento de discursos diferentes, isto é, um discurso contemporâneo voltado para a realidade atual, ao representar os dramas de uma adolescente e a referência recorrente ao discurso dos contos consagrados como clássicos infantis (A Bela Adormecida, O Príncipe Rã, Branca de Neve e O Patinho Feio). A tecitura novelesca é estruturada por micronarrativas que se relacionam com uma macronarrativa que tem como elemento coordenador a personagem-narradora. 

A narrativa está dividida em cinco capítulos, que podem levar à leitura da estrutura invariante proposta por Vladimir Propp (1984). À apropriação de tal estrutura na elaboração dos títulos, contudo, subjaz um jogo de desmistificação, pois a narrativa não segue uma sequência linear, fragmentando-se num vai-e-vem constante entre passado e presente, desestruturando a unidade de uma possível leitura proppiana. Assim estão divididos os capítulos: “Do início provável”- situação inicial de equilíbrio (o nascimento de uma menina; ‘Espelho, espelho meu”- situação de desequilíbrio (o sentimento de inferioridade da personagem); “Do encontro com os amigos”- provas (nos relacionamentos com os amigos e a morte da mãe); “Do sonho e das fugas” - auxílio mágico (os contos de fadas) e “Reencontro”- novo equilíbrio (superação dos conflitos).

O primeiro capítulo, relatado por um narrador em terceira pessoa, obedece ao início das efabulações feéricas, indeterminando o espaço e o tempo: “Era uma vez um reino distante” (KRIEGER, 1991, p.7)

O segundo capítulo recebe uma nova voz, que dará continuidade à narrativa, agora em primeira pessoa: “Regina: esse é meu nome” (KRIEGER, 1991, p.11). A personagem-narradora assume o discurso feérico, ao contar seu nascimento de forma idêntica ao da Bela Adormecida. No castigo da décima terceira fada, surge o rompimento com o discurso alheio: “Desejou com a força da inveja e da rejeição: eu deveria nascer desajeitada. Magricela. Espinhenta. Sem graça ou beleza” (KRIEGER, 1991, p.12), e é desvendado ao leitor o segredo da personagem: o refúgio nos contos de fadas frente à difícil tarefa de crescer. Ao leitor, já inserido na construção narrativa, é apresentado um problema da realidade escolar brasileira: 

Não aguentávamos mais; desde a 4a série, os professores viviam empurrando objetos diretos e indiretos, complementos nominais e adjuntos goela abaixo. Ninguém entendia. Mas, também, ninguém explicava direito coisa alguma. (KRIEGER, 1991, p.l7)

Usar ou não sutiã, namorar o colega da classe, ciúmes etc., são outros assuntos abordados, participando ao leitor a contemporaneidade da obra.

No quarto capítulo, ao se deparar com a perda da figura materna, a personagem retoma a imagem da Bela Adormecida; numa tentativa de fuga, o pai-esposo, como um príncipe, despertaria a mãe-esposa do sono profundo. O discurso alheio é tomado como citação:

Lá estava ela tão linda que o príncipe não conseguia parar de admirá-la. Curvou-se e deu-lhe um beijo. Quando ele a tocou com os lábios, a princesa abriu os olhos e, despertando, olhou-o feliz. (KRIEGER, 1991, p.37)

A personagem começa a questionar a existência dos auxílios mágicos: 

Onde estão as mulheres sábias do reino, que não desfazem o encanto? (KRIEGER, 1991, p.37)

Na beira de um rio beijei um sapo, ele continuou sapo. Cadê meu príncipe encantado, cadê meus reis, cadê eu? (KRIEGER, 1991, p.28)

A flexibilidade entre o imaginário e a realidade é uma característica comum à infância. A crítica ao mundo do faz-de-conta se dá na medida em que a personagem já tem l3 anos: “Como é difícil fazer treze anos!” (KRIEGER, 1991, p.15), idade possível de compreender a complexidade do mundo. Por isso a (re)elaboração do discurso resulta num questionamento às soluções de evasão e conformismo, promovidas pelas narrativas tradicionais, em que os problemas são resolvidos num passe de mágica. O equilíbrio relativo no final da narrativa - “Mas tudo bem: a vida é boa” (KRIEGER, 1991, p.46) - supera o mundo do faz-de-conta, por meio das relações em que alegrias e tristezas têm peso igual, não apontando soluções, onde o real é inacabado.

Segredos do coração, ao dialogar com textos já “habitados”, procura estabelecer uma visão de mundo diferenciada daquela proposta pelos textos absorvidos, ou seja, essas apropriações são feitas no sentido de contestar os valores que foram secularizados, pelos contos de fadas, e não para cultuá-los como verdade absoluta.


Referência:

DEBUS, Eliane S. D. Entre vozes e leituras. Florianópolis: UFSC, 1996 (Dissertação de Mestrado/PPGL/UFSC).

KRIEGER, Maria de Lourdes. Segredos do coração. Il. May Shuravel. 4.ed. São Paulo: Moderna, 1991.

PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. trad. Jasna Paravich Sarhan; Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.


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