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Um Amigo muito especial
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RESENHA

por Eliane Debus
Professora MEN/PPGE/CED -UFSC
2012

Um amigo muito especial, de Maria de Lourdes Krieger, tem uma estrutura narrativa composta de doze capítulos e não obedece a uma sequência linear: pelas lembranças do menino Lauro, despertado pela chuva no primeiro capítulo, se entrelaça toda a narrativa que, em flash-back, vai descortinando a vida do menino.

A história é centralizada no personagem Lauro que, em sua solidão, devido ao alienamento da mãe, ao silêncio da avó e à ausência do pai desaparecido, refugia-se numa realidade interior, através da criação de um amigo imaginário: o elefante. 

Jacqueline Held (1980) levanta dois pontos importantes no que se refere à humanização de animais pela criança: permite a projeção de seus desejos e temores diante da sociedade adulta e, também, das situações familiares, inclusa a situação de aprendizagem.

Transpondo essa reflexão para a narrativa, percebe-se que a personificação do amigo imaginário permite ao menino projetar seus desejos e aflições frente o mundo que o cerca, sua incomunicabilidade com o mundo adulto; o “amigoespecial” vem preencher os espaços vazios de sua relação com a mãe e a avó, e a ausência do pai. Com o amigo imaginário ele passa por um processo de aprendizagem, (auto)conhecimento e crescimento interior, que o leva, aos poucos, a superar os problemas e deixar a fase do animismo.

A narrativa, no entanto, se constrói de tal modo que deixa ambígua a existência do elefante (real ou projeção do menino), provocando, dessa maneira, um vazio que age como elemento estimulador da atividade imaginativa do leitor. 

A crítica à escola surge na incompreensão da professora, vinda do espaço urbano, em reconhecer como verdadeiros os animais de estimação das crianças do interior: gambás, lagartos etc. O tom coloquial, no discurso das personagens, acentua-se nas falas da avó de Lauro: “Não se lembro dereito...Uma promessa.”(KRIEGER, 1990, p.17)

Não há uma localização específica do ambiente da narrativa, mas a fábrica, com seus tecelões e o pó dos teares, remete-nos às confecções da região de Brusque, localizada no Vale do Itajaí, polo têxtil do Estado catarinense.

As desigualdades sociais são retratadas na pobreza do lar de Lauro, nas tarefas realizadas pela mãe em um bar, na doença desta e na fila do INPS que ela enfrenta, questionadas pelo menino. 

As relações de poder e a repressão ditatorial, implícitas no desaparecimento do pai de Lauro, que estava engajado na luta operária, reivindicando condições melhores e mais justas de trabalho, também deixa um espaço vazio, não esclarecendo o fim da personagem.

A investida da polícia, “os homens” na casa de Lauro, à procura do pai, insere a obra de Maria de Lourdes Krieger “entre os textos que abordam a ditadura de extrema direita” (HOHLFELDT, 1986, p.90) instaurada no País pós-64. Isso, para Celestino Sachet, representa “um filão que fazia falta em Santa Catarina: o romance engajado, o romance cheiro-de-povo, o romance cheiro da terra. Melhor, cheiro de fábrica” (SACHET, 1981). O tom lírico-poético da narrativa, contudo, não se dilui ao apresentar os problemas sociais e políticos.

A narrativa termina quando o dia está amanhecendo e a chuva começa a cessar; a mãe de Lauro fala ao menino que ela e a avó “ Vamos cuidar mais de ti”( KRIEGER, 1990, p.68). O menino, então, esclarece à mãe que gostaria de deixar seu elefante partir. A narrativa termina em aberto, mas com a perspectiva de esperança:

O menino deitou-se e ficou pensando.

Ao longe, um som no silêncio da noite. Passos. Como de quem caminha, carregado de esperanças.

Lauro pôs-se alerta. E seu coração também carregou-se de esperança. (KRIEGER, 1990, p.70)

As relações de Lauro e a construção da narrativa são pontuadas de silêncio e ausências que apelam à vivência imaginativa do leitor.


Referência

DEBUS, Eliane S. D. Entre vozes e leituras. Florianópolis: UFSC, 1996 (Dissertação de Mestrado/PPGL/UFSC).

HELD, Jacqueline. O Imaginário no Poder: As Crianças e a Literatura Fantástica. trad. Carlos Rizzi. São Paulo: Summus, 1980. 

HOHLFELDT, Antonio. “Literatura para o Jovem de Hoje” In: KHÉDE, Sonia Salomão (org.). Literatura Infanto-Juvenil um Gênero Polêmico. 2.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. p. 90.

KRIEGER, Maria de Lourdes. Um Amigo Muito Especial. Il. Marco Cena. 6.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.

SACHET, Celestino. “Um Amigo mais do que Especial”. In: jornal O Estado. Florianópolis: 06/08/81.


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